Instituto Pensar - Trabalhadores da Cinemateca falam sobre os desafios para o futuro

Trabalhadores da Cinemateca falam sobre os desafios para o futuro

por: Tainã Gomes de Matos 


Foto: Reprodução


O descaso do governo federal em relação à Cinemateca Brasileira, o desconhecimento do trabalho envolvido no processo de preservação audiovisual e a ignorância em relação ao funcionamento básico da instituição levaram os trabalhadores do arquivo a se mobilizarem para explicar a relevância da memória cinematográfica para a cultura nacional. A falta de informação e a negligência com o setor tem causado espanto dos especialistas que estão sendo obrigados a dizer o óbvio: memória é fundamental para que um país possa existir. 

Na última quinta-feira (5), a Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) fez uma live no Youtube com o objetivo de ouvir profissionais que atuaram na Cinemateca Brasileira. O objetivo foi expor os processos de trabalho dentro da instituição e as etapas que envolvem a preservação da memória audiovisual do país.

A mobilização desses profissionais ocorreu após um incêndio que atingiu a unidade complementar da Cinemateca, na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, no dia 29 de julho. O fogo destruiu quatro toneladas de documentos de todo o histórico de fomento ao cinema no Brasil, além de rolos de filmes originais e cópias, objetos museológicos, equipamentos de uso corrente, parte do acervo da biblioteca de Glauber Rocha.

A transmissão ao vivo foi mediada pela integrante da diretoria da ABPA, Lila Foster, que ouviu diversos profissionais que passaram pela Cinemateca e que explicaram todos os meios de desenvolvimento do arquivo.  

Participaram Carlos Roberto de Souza, Ines Aisengart, Leandro Pardi, Nathália Colsato, Rodrigo Archangelo, Sandro Genaro, Vivian Malusá e mediação de Lila Foster. 

Descaso do governo

Abandonada pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido), um galpão da Cinemateca Brasileira, localizado na Vila Leopoldina, Zona Oeste de São Paulo virou cinza. A Cinemateca é a instituição responsável pela preservação da produção audiovisual nacional e guarda mais de 100 anos de história.

Diante da paralisia de quase um ano em relação ao retorno dos trabalhadores à instituição, o governo afirma que as necessidades básicas do arquivo estão garantidas com o fornecimento de água, luz e bombeiros e o retorno de alguns poucos servidores. 

Segundo a ABPA, o que o governo parece ignorar é que nenhum arquivo ou cinemateca garante o seu funcionamento básico sem a presença de funcionários qualificados. O que persiste com tais afirmações é o desconhecimento do trabalho envolvido no processo de preservação audiovisual. 

O intuito de dar voz a esses profissionais é justamente mostrar que o trabalho de preservação do audiovisual é um esforço permanente e que requer  apoio não só do governo, como também dos setores privados. 

Início do trabalho na Cinemateca 

Lila Foster, iniciou a transmissão mencionando uma definição de um arquivista audiovisual internacional, o Ray Edmondson, autor do livro Arquivística audiovisual: filosofia e princípios. 

Segundo o autor, a preservação é a totalidade de operações necessárias para assegurar o acesso permanente a documentos audiovisuais no maior grau de sua integridade, ela pode englobar um grande número de procedimentos, princípios, atitudes, equipamentos e atividades. 

"A preservação engloba a preservação e restauração de suportes, a reconstituição de versões originais, copiagem e processamento, digitalização, manutenção dos suportes em condições adequadas, de armazenamento a recriação ou emulação de procedimentos técnicos obsoletos e de equipamentos e de condições de apresentação, a pesquisa e a coleta de informação e catalogação para levar o bom termo dessas atividades?
Ray Edmondson


Lila completou dizendo que nunca se termina de preservar uma obra e que no melhor das hipóteses ela está em processo de preservação. 

Após esta introdução, a diretora cedeu a palavra ao especialista em preservação do audiovisual, Carlos Roberto de Souza, que trabalha na Cinemateca Brasileira desde 1975. Graduado em Cinema Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1972), mestrado em Artes pela USP (1979) e doutorado em Ciências da Comunicação pela USP (2009) com a tese "A Cinemateca Brasileira e a Preservação de Filmes no Brasil? ele contou como começou os trabalhos no arquivo. 

" O Carlos Roberto é um tipo de história viva desse percurso, da instituição, e a maneira como os procedimentos de trabalho foram sendo consolidados. a geração dele foi muito importante na consolidação desses processo de trabalho. e na formação de novos quadros dentro da cinemateca eu me considero formada pelo carlos roberto?
Lila Foster

Carlos iniciou a sua fala indicando três filmes, que segundo ele, são imprescindíveis para quem quer entender todo o processo que envolve a preservação do audiovisual, que são: Cinemateca Brasileira, de Ozualdo Candeias, Nitrato, de Alan Fresnot e Câmara Aberta ? cinemateca Brasileira, realizado pela Vera Roquete Pinto. 

"Esses 3 filmes cobrem um vasto período para as pessoas interessadas em saber mais sobre a cinemateca?
Carlos Roberto

Não existe acervo sem pessoas

Carlos Roberto contou que quando ele chegou na Cinemateca, em 1975, o que ele encontrou foi uma amontoado de coisas e pouca orientação sobre o que fazer com o material. 

"Quando a gente entrou na cinemateca, o que encontramos foi basicamente o que está no filme do Fresno, que era um acúmulo de coisas. Gosto do tema da live de hoje porque para mim, a Cinemateca sempre foi um acervo e as pessoas que trabalham com acervo. São faces de uma mesma moeda. Só o acervo não significa nada e só os trabalhadores também não significam nada?
Carlos Roberto 

De acordo com o relato, a geração de Carlos Roberto teve que aprender a mexer com um acervo audiovisual. Não existiam manuais e a disciplina de conservação do audiovisual brasileira teve que ser criada. "Nós tivemos que fazer várias adaptações porque os cursos que a gente tinha acesso eram para arquivos do primeiro mundo, o que não era o nosso caso. A gente ia aprendendo e praticando ao mesmo tempo?, contou. 

O especialista destacou que com o tempo foi preciso chamar mais pessoas e instruí-las com o pouco que se sabia. " O laboratório de restauração foi uma das primeiras áreas que a gente começou a se especializar. Descobriu-se alguns talentos nesse processo que hoje são referências internacionais no setor?, disse. 

Carlos Roberto classificou como uma catástrofe o atual momento da memória audiovisual brasileira e reforçou que a  atividade de preservação é uma atividade permanente e que necessita ser valorizada. 

Leia também: Cinemateca em chamas: não foi por falta de aviso

Trabalho nada glamoroso

A segunda profissional a ser ouvida foi Nathália Colsato, que trabalhou por 7 anos na Cinemateca Brasileira. Ela começou como estagiária da área de preservação e da catalogação e se especializou neste setor. "É um trabalho não muito glamoroso. Quando entrei eles me perguntaram se eu não me importava em trabalhar com materiais que estão cheios de fungos, que estão se decompondo, em condições precárias?, contou. 

Nathalia começou os trabalhos na Cinemateca em 2011, justo quando a cinemateca recebeu um grande lote do Canal 100. "Um material que já veio muito estragado?, revelou. "Eu fui estagiária da preservação e da catalogação até 2013, e depois da primeira crise em que todo mundo saiu e eu saí também e acabei retornando em 2016?, continuou.

Nathália explicou ainda que além da catalogação, existe toda uma parte documental  muito importante para a inclusão das informações coletadas. 

"É preciso fazer rondas para saber sobre a temperatura, a climatização,  acompanhar a equipe de limpeza e de manutenção, ensinar como se limpa um depósito,  como se arruma os arquivos sem causar algum perigo aos materiais. É um universo muito grande de atividades importantíssimas?,
Nathália Colsato

Base de dados Filmografia Brasileira

O pesquisador e trabalhador da Cinemateca Brasileira por períodos entre os anos 2001 e 2020, Rodrigo Archangelo, foi o terceiro profissional a compartilhar a sua experiência dentro do arquivo. Ele participou da gestão da base de dados Filmografia Brasileira; colaborou na organização de eventos, elaboração de projetos e iniciativas institucionais de preservação e acesso do seu acervo.

"Em 2021 a base completa 21 anos online e é triste essa data com o momento que a Cinemateca vive. A base de dados é um patrimônio informacional que poucos países têm , aliás é uma das poucas entregas que a cinemateca pode fazer na situação em que ela está porque é um produto digitalizado?
Rodrigo Archangelo

Segundo o especialista, a base de dados funciona como um senso e serve como um próprio registro da Cinemateca. "Existem muitos processos que são mostrados no final como a categorização de filmes, a troca de informações com outras cinematecas. Essa base  é um patrimônio que está sendo ameaçado?, disse,

Rodrigo pontuou também que existem obras que não existem mais e que o único documento existente é uma decupagem, por exemplo. "O registro de um trabalhador lá nos anos 70 e esse registro é o único resquício de uma experiência que pode ser contada através de uma catalogação?, disse. 

Saídas possíveis para Cinemateca

Rodrigo ressaltou que entre as crises que atingiram em cheio a Cinemateca Brasileira a saída dos servidores públicos, em 2019, foi o início da derrocada de um longo trabalho que já estava em andamento. Para ele, uma das possíveis saídas para a crise que o arquivo enfrenta é mostrar para o mundo o que a Cinemateca Brasileira abriga. 

"Vamos mostrar o que a cinemateca tem de comédia, de futebol, de folclore, de ciência e medicina, de filmes científicos, de comportamento como a moda, com a luta de movimentos sociais, reconhecimentos dos povos indígenas e toda essa filmografia que fala tanto do Brasil.?
Rodrigo Archangelo

Parceria com setores privados 

A Preservacionista audiovisual, Ines Aisengart, trabalhou na Cinemateca Brasileira de 2016 até 2020. Ela possui experiência em gestão de patrimônio cultural, com ênfase no audiovisual, acervos em película, vídeo e digital, além de  pesquisa, curadoria, produção editorial, produção executiva e financiamento. 

Em sua participação, ela falou sobre a oscilação e instabilidade do profissional de conversação do audiovisual e fez duras críticas à gestão do atual governo em relação ao tratamento dado à memória brasileira. 

"É preciso furarmos a bolha pra gente pensar em possíveis futuros para cinemateca.  Nós vimos uma grande evolução do audiovisual , sobretudo com o fundo setorial do audiovisual e a gente teve investimento crescente na proliferação de empresas produtoras, na consolidação desse mercado, novos players entrando, e isso aconteceu gerando uma conta bem alta para as intuições de preservação que acabaram ficando de lado.?
Ines Aisengart

Inês revelou que foi com muita tristeza que ouviu a notícia do incêndio na Cinemateca, mas que a ausência de manifestações por parte dos produtores de audiovisual a chocou ainda mais. 

"A falta de manifestação desse mercado do audiovisual em relação ao incêndio reafirma ainda mais esta distância tremenda entre o digital e o analógico. Precisamos estabelecer mecanismos com essas empresas. Temos a Netflix, por exemplo. Cresci em locadoras de VHS e eu tinha muito contato com filmes brasileiro e isso a gente não vê nos streamings atuais?, lamentou. 

Para ela, a falta de filmes brasileiros nas plataformas vai criando um imaginário de cinema na mente das pessoas que não condiz com a realidade nacional. "Precisamos ter uma entrada maior com esses  novos players e criar mecanismos para reverter isso. É muito gritante o quanto se tem muito ônus na preservação e pouco bônus com a relação com os produtores?, afirmou. 

Setor de difusão da Cinemateca

A Produtora audiovisual, curadora, pesquisadora, Vivian Malusá, também foi uma das profissionais que passaram pela Cinemateca e que foi ouvida durante a live. Ela tem 16 anos de experiência nos campos de gestão, coordenação de projetos e produção cultural e audiovisual; patrimônio, pesquisa e história do cinema e do audiovisual.

Como coordenadora de Difusão da cinemateca de 2007 a 2013, ela explicou que o trabalho consistia em pensar maneiras de oferecer o material ali existente da meneira mais simples possível de ser acessado. 

"Seguíamos muito as orientações dos trabalhos da FIAF ( International Federation of Film Archives) que era a maior referência em texto e em políticas de acesso ao acervo. A Unesco também era uma fonte que a gente seguia bastante?, disse. 

Vivan destacou que o principal trabalho do setor de difusão é levar o conteúdo para as pessoas. "Um acervo precisa do acesso. Na cinemateca,  nós pensamos muito em dar acesso não só ao filme em si, mas ao metiê e ao processo e o que é o campo do patrimônio audiovisual?, completou.  

Cinemateca vira cinzas

O ex-coordenador de difusão da Cinemateca, Leandro Pardí trabalhou 15 anos na instituição e foi um dos últimos a relatar a sua experiência junto ao acervo nacional na transmissão ao vivo. Autor de um artigo publicado pela Folha Ilustrada nesta sexta-feira (6), ele destaca a necessidade de implementar políticas públicas para a preservação e que  não há políticas públicas sem investimento compatível.

Desde que a Cinemateca passou a ser administrada via organização social, em 2018, lá se foram três ministérios, da Cultura, da Cidadania e do Turismo, além de oito responsáveis pela pasta cultural e mais sete responsáveis pela Secretaria do Audiovisual. 

Essa descontinuidade, segundo ele, levou a cinemateca a maior crise de sua história. Em 75 anos, esse é o quinto incêndio, o primeiro fora do depósito de nitrato. "É preciso todo um processo burocrático do Estado para iniciar uma contratação emergencial?, completou.

Chamamento para a nova gestão da Cinemateca

Governo federal publicou edital para contratar entidade que vai gerir e preservar a Cinemateca de São Paulo um dia depois do incêndio, no dia 30 de julho. O Documento diz que resultado provisório sobre a entidade escolhida ocorrerá até 27 de outubro de 2021. Cinemateca está sem gestor desde dezembro de 2019, o que levou o MPF a ajuizar uma ação contra a Secretaria Especial de Cultura por abandono do espaço. Processo está suspenso após acordo judicial.

Na avaliação de Leandro, o chamamento para a nova gestão da cinemateca, publicado um dia depois do incêndio, é a repetição de uma política pública falida, 

"Promover recursos insuficientes até para o custeio básico da instituição é condenar essa instituição ao mesmo processo degenerativo que a levou aos últimos dois incêndios de sua história. Questiono também se o Ministério do Turismo e seus dirigentes têm a capacidade de entender as reais necessidades e a complexidade de um órgão como a Cinemateca?, escreveu para a Folha. 

Leandro destaca ainda que é tempo de a sociedade e os poderes se articulare e criarem a tradição da memória, de pensar no direito das gerações futuras e valorizar o acesso da população a qualquer espaço para esta reflexão. "O direito a incorporar, debater, reivindicar e reinventar memórias que são coletivas?, concluiu. 

O último a dar  declaração na transmissão foi o projecionista da Cinemateca Brasileira, Sandro Genaro. Ele se adaptou ao fim da película tornando-se um dos primeiros especialistas no Brasil em projeção digital, para assim poder continuar trazendo a mágica dos filmes para o cinema.

Em sua declaração, ele afirmou que todo o trabalho de proteção e armazenamento das películas acaba nas mãos do projecionista. 

"Temos a responsabilidade de devolver o filme em perfeito estado. Em 2007, a gente enfrentou o desafio de criar métodos para trabalhar com a película de maneira a provocar menos danos. É o manuseio da película e que causa a deterioração?
Sandro Genaro

Ele lamentou o atual momento vivido pela Cinemateca, mas admite ter esperanças de mudança de cenários para os próximos anos. 

Por fim, Leandro Pardí enalteceu a importância da preservação da cultura brasileira como um todo e que o audiovisual é apenas uma parte desse enorme universo que envolve as memórias brasileiras.

"Sem memória não temos como nos agrupar, não há passado para congregar valores. Uma nação é feita por um acordo amplo de memória, sobre acontecimentos, conceitos, valores, hábitos, datas, jeitos de fazer, costumes e tudo aquilo que, reunido, chamamos de cultura. Esse todo que deve ser preservado para permanecer uma noção de identidade brasileira?, concluiu.

Assista a íntegra da live

Com informações da Folha de S. Paulo e ABPA




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